quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Sementes de Esperança para além da morte

Nasceu-nos um anjo

O pequeno David chegou à missão com os avós. Segundo eles, o pequeno estava «um pouco quente».
Eu penava com os efeitos da malária, que me impediam de fazer grandes coisas. Foi a Rosanna quem verificou a febre do menino. Não era nada de significativo, mas ficámos de vigilância durante a noite. No dia seguinte, eu já não conseguia levantar-me da cama. A Rosanna continuou atenta ao David.
Às três da tarde, ela vem ao meu quarto e diz-me: «O David está super quente! Já lhe dei paracetamol, mas a febre não desce!» Eu, também com febre, pus a mão no menino e vi que a temperatura era exagerada. Aconselhei-a a dar-lhe um banho de água fria e a ir com ele ao hospital. Ela lá foi, um pouco contrariada, porque era domingo e, aos domingos, o despacho do hospital é ainda pior do que de semana.
Voltaram pouco depois. Mas o quinino e o paracetamol não venciam a febre, e o pequeno David voltou ao hospital, para ser posto a soro ou para fazer algo que baixasse a temperatura.
Passados dez minutos, do meu quarto consegui reconhecer a voz da avó do David e o choro da
Rosanna. Um pensamento abateu-se sobre mim: «Salvar um bebé para, após ano e meio aqui, o ver morrer…» O certo é que a convivência com a morte e com a vida são uma constante aqui na missão.
Hoje, quando recordo o sorriso do David, com apenas oito dentinhos, ou lembro os seus primeiros passos, as suas primeiras «palavras», não posso deixar de pensar que para nós nasceu um novo anjo no céu. Um anjo que nos enche de esperança e de força para continuar a lutar, a fim de que muitos possam viver.
Talvez a morte do David não seja justa, mas mais injusto seria desistir de lutar em favor da vida. Que a esperança seja sempre maior que a tristeza e o desânimo!

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Quando a dignidade é prioritária

A História dos cestos (in)úteis

Sempre sério e muito discreto, Jorge era um homem que, apesar de ainda não ser de idade muito avançada, sofria de várias doenças.
A retenção de líquidos era uma constante e a consequente discriminação também. De facto, todos consideravam que o seu mal «não era coisa de hospital» (era bruxedo!), por isso, Jorge era colocado à margem com a sua esposa igualmente discriminada por nunca ter tido filhos.
Este casal vivia, assim, com grandes dificuldades e fora do enquadramento social.
Um dia a mulher do Jorge adoeceu gravemente. Apesar das suas muitas dificuldades, Jorge consegui trazê-la (com um carrinho de mão) até à missão e, de seguida, até ao hospital. Esta mulher, completamente desidratada (e após vários dias de febre passados, em casa, sem medicação), acabou por sucumbir ao fim de três dias. O Jorge ficou sozinho e sem meios sequer para dar à sua esposa um funeral digno. Socorreram-lhe alguns cristãos que, dadas as circunstâncias, se prontificaram a ajudar.
Daí para a frente o Jorge, desesperando pela sua subsistência, começou a "fabricar" cestos. No entanto, não conseguia fazê-los senão rendilhados e abertos não sendo muito práticos para arrumações ou para outro tipo de utilização caseira. Contudo, a sua dignidade impedia-o de cair na mendicidade.
O Jorge sabia que ninguém queria comprar aqueles cestos... só a missão poderia compreender o seu desespero... Assim, veio uma vez vender, e nós compramos... outra vez, e nós compramos... e assim por diante.
Certo dia, o Jorge precisava de mais dinheiro que habitualmente, então, confeccionou um cesto enorme! Veio... a Augusta disse-me:
- Mais vale dar-lhe o dinheiro que ele precisa e ele leva o cesto.
Contudo, se o fizéssemos Jorge iria perceber que estava a receber uma esmola e, para o seu orgulho e dignidade, isso seria feri-lo demasiado.
Olhei para o cesto... entrei para dentro dele e disse a rir à Augusta:
- O cesto é útil! Ficamos com ele!
A rir, pagamos-lhe o cesto e o Jorge lá foi todo contente.
Este foi o seu último cesto... Um dia, passou lá por casa de noite, vinha despedir-se. No hospital tinham-lhe dito que era melhor ir para casa descansar. O Jorge sentia-se a morrer... Convidamo-lo a jantar, mas não quis. Demos-lhe algum dinheiro e ele, prometendo que nos iria trazer outro cesto se algum dia conseguisse melhorar, lá foi para casa...
O Jorge partiu, na casa, ficaram os cestos perpetuando a memória de alguém que nunca deixou de lutar pela sua dignidade.

Estes cestos, hoje acumulados em casa, falam das razões pelas quais se mantém firme a nossa esperança: a luta pela justiça social, pelo direito à Vida e sobretudo, a luta pela dignidade humana.